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terça-feira, 23 de setembro de 2008

44- Meu Maior Tesouro

Olás! Começo relembrando aqui que o blog funciona como um livro. Cada postagem é um capítulo, por isso coloco numeração. Deve ser lido na ordem. E como descrevo sempre, estou relatando minha experiência com a Doença de Crohn, desde o ano 2000 quando ela surgiu em minha vida. E no relato estou no ano de 2006, ou seja, o que estou relatando hoje, na postagem 44, aconteceu em fins de 2006. Atualmente (out/2008) as coisas estão bem diferentes já.


Continuando o relato anterior, entrei em meu quarto chorando compulsivamente...


Mas meu bebê estava no computador do meu quarto, conversando com uma amiga pela Internet. Como fazia sempre que ficava perto dela, procurei recolher o choro, mas dessa vez foi impossível. Deitei na cama e continuei a chorar. Claro que ela veio ao meu socorro. Esperou eu me acalmar um pouco e tentou saber de mim o que estava acontecendo. Então contei a ela o ocorrido no consultório e o meu desespero em saber que necessitava parar com o cigarro, mas que tinha muito medo. Vou tentar reescrever nosso diálogo, claro que pegando o essencial, pois não vou conseguir lembrar das palavras certas agora, mas a essência ficou marcada para sempre:

- Mãe, olha para mim.

- ...

- Mãe... você quer parar de fumar?

- Quero muito, mas tenho medo do “depois”...

- Como assim, mãe?

- (em prantos...) Tenho medo de conseguir parar e, na hora em que eu realmente precisar dele e eu não encontrá-lo à minha disposição, eu não saber o que fazer e perder a razão.

- E se você parar de fumar e quando sentir necessidade dele, ao invés de usá-lo, usar a mim?

Naquele momento congelei. Minha filha de 16 anos estava agindo comigo como uma adulta e eu parecia ser a adolescente naquele momento. Mas isso era o de menos. Que espécie de mãe eu era a ponto de sujeitá-la a vivenciar aquilo? Era ela que estava cuidando de mim naquele momento! Mas estava tão desmotivada, sem forças e desanimada, que não tive energia para reagir e chorei mais ainda. Me senti um lixo, como se tivesse cometendo o pior dos pecados...

- Filha, não posso usar você. Primeiro isso não é justo por você ser minha filha, e depois porque não é certo usar as pessoas para descarregarmos nossos problemas. Não farei isso, em sã consciência, com você.

- Mãe, você quer mesmo parar de fumar?

- Quero! (e chorando...)

- Então só tem um jeito: parando. E tem que ser de uma vez só. Não acredito que vício a gente vai largando aos poucos. Você topa?

- ...

- Mãe?

- O que você sugere?

Ela pegou uma sacola de plástico, me entregou e disse:

- Coloca aqui dentro todos os seus cigarros e tudo relacionado a eles também.

Obedeci. No final, a sacola tinha 3 maços de cigarro, 2 isqueiros, 2 cigarreiras, 1 cinzeiro. Ela pegou a sacola, amarrou e me disse:

- Agora você fica aqui que vou levar até o lixo, tá?

- Tá bom. Eu espero.

Ela demorou uns 10 minutos.

- Pronto. Demorei porque fui levar até o lixo da garagem, para que você não ficasse com vontade de atacar o lixo daqui, de madrugada. E antes que você pense que pode perfeitamente ir até o lixo da garagem para pegar um cigarro, eu molhei tudo que tinha dentro da sacola e amassei bem. Ta tudo destruído.

- ...

- Se acontecer de você não conseguir dormir, querer ou precisar muito de fumar, vá até meu quarto, me acorde que venho te fazer companhia. Desse jeito tenho certeza de que você vai conseguir.

E assim aconteceu. No dia 18 de setembro de 2006, parei de fumar após 20 anos ininterruptos com esse vício. E graças à minha filha.


Não tenho vergonha de contar esse meu momento de fraqueza, pelo contrário. Tenho orgulho da atitude dela para comigo, atitude de amiga, atitude madura. Nunca esquecerei esse dia e a firmeza de caráter dela. Minha filha linda, obrigada!

Refiz alguns exames de sangue e minha hemoglobina estava baixa (11 g/dL) e meus linfócitos também.

Na semana seguinte voltei ao consultório para a médica ver a ferida e marcar a biópsia. Não houve regressão e marcamos a biópsia para o dia 02 de outubro. Contei a ela que havia parado de fumar e ela deu um largo sorriso. Ficou muito feliz, mas achei que ficaria mais. Acho que uma semana sem fumar não significa muita coisa. Contei para outras pessoas também, mas não senti ninguém muito empolgado com a notícia, só eu mesma e minha filha. Apenas depois de um mês que as pessoas realmente começariam a me dar credibilidade. Mas aí, já não precisei mais. Busquei apoio em mim mesma e consegui. Depois daquela noite com meu bebê me “salvando”, não coloquei mais cigarro na boca. E assim terminei o mês de setembro. Um mês de conquistas, descobertas e acontecimentos marcantes.

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43- Dia Marcante: 18/09/2006

No começo do mês de setembro tive uma novidade desagradável (mais uma!): ao lado do meu estoma, apareceu uma ferida, bem embaixo da placa da bolsa de colostomia. Espero que vocês possam imaginar o tamanho do meu susto. Estava justamente voltando a ter uma vida relativamente normal, pois já estava me adaptando ao estoma, a perna estava bem melhor, as aulas na faculdade estavam interessantes e havia retomado alguns contatos pessoais quando isso aconteceu.

Liguei para minha médica pedindo uma consulta urgente, mas só consegui para 18 de setembro. Enquanto isso, fui até a AMÓS e comprei uma pasta própria para se passar na pele, embaixo da placa da bolsa, para proteção. Não vou dizer o nome/marca para não interferir nas opções de quem estiver lendo, pois na verdade, tanto as bolsas quanto os acessórios dependem do tipo de pele do usuário. Mas essa pasta cara a Associação consegue a preço de custo para os associados. Comecei a passar na ferida, para que pudesse colocar a placa, mas depois de alguns dias isso ficou impossível, pois a ferida estava com muita secreção e por isso a pasta não fixava além de arder horrores, pois ela contém álcool. Era a conta de encostá-la na ferida e tinha a sensação de estar queimando, era horrível a dor. Mesmo assim continuei aplicando até o dia da consulta. E esse dia foi marcante demais para mim...

Minha mãe foi me acompanhando até o consultório e presenciou cada detalhe dentro daquela sala. Fui examinada pela médica e, claro, ela não gostou do que viu. Ficou até um pouco chocada, tanto que chamou as outras duas colegas da clínica para verem a ferida e ajudarem-na no diagnóstico. Mas ambas foram categóricas em afirmar que não seria possível diagnosticar e que o melhor seria fazer uma biópsia para exclusão. Na opinião das três poderia ser Pioderma Gangrenoso (úlcera na pele que pode estar associado a alguma doença sistêmica, no caso, o Crohn) ou até mesmo a doença de Crohn com manifestação na pele, apesar de ser raríssimo.

E pensamos também na hipótese de ser uma alergia da pele em relação à resina da bolsa de colostomia. Elas então saíram e fui me vestir para conversar e analisar o que deveria fazer. Foi a conversa mais difícil que tive até hoje com a médica.

Primeiramente ela disse que a biópsia deveria ser realizada e que iríamos marcar um dia para fazer no ambulatório do hospital, pois necessitava de anestesia local e esse procedimento só poderia ser realizado lá. Ela manteria a medicação e incluiu um antibiótico. E que independente do diagnóstico, algumas considerações deveriam ser levadas em conta. Claro que a causa da ferida poderia ser a placa da bolsa que pode ter irritado a pele a ponto de feri-la. Mas que eu não deveria esquecer de que no mês anterior eu estava com infecção intestinal e que a ferida estava localizada exatamente ao lado do estoma, por onde as fezes saíam. E era exatamente sobre isso que ela queria conversar.

Nesse momento ela começou a falar de uma forma bastante séria e me disse que, mesmo eu sendo uma paciente que seguia o tratamento à risca, algumas atitudes minhas não condiziam com o conhecimento que eu tinha (graduanda em Enfermagem). E que ela tinha certeza absoluta que o cigarro prejudicava minha doença de uma forma muito violenta. Ela deixou claro que não estava falando dos malefícios do cigarro em meu corpo de um modo geral, e sim voltado para o Crohn. Disse também que iria cuidar de mim até onde Deus permitisse, mas que queria ter a consciência tranqüila de ter me alertado a respeito do problema. E terminou falando que essa seria a última vez em que ela falaria comigo a respeito do cigarro.


Enquanto ela foi falando, senti meu mundo ruir. Claro que eu sabia dos problemas do cigarro, mas eu precisava dele e muito. Será que ninguém nunca entenderia isso? Eu perdi tudo na vida: minhas economias, meus amores, minha vontade de amar alguém, meus amigos, meu físico, minha vida pessoal, minha estima. O cigarro era meu único companheiro, minha bengala. Era nele que eu me apoiava para tudo. Como poderia largá-lo? E descobri que meu maior medo era não conseguir fazer isso, tentar largar e não conseguir. Sofrer por mais um motivo. Enquanto pensava nisso tudo, fui desabando. Chorei, mas dessa vez sem receio de despertar opiniões a meu respeito. Foi como um choro de criança. E minha médica não foi complascente, ao contrário, continuou fria e seca. Despedi, prometendo retornar na semana seguinte para ver a ferida novamente.

Saí de lá arrasada, querendo nunca mais voltar a pisar ali. E minha mãe ao meu lado, presenciando tudo. Enquanto ela buscava o carro no estacionamento aproveitei para fumar um cigarro. Como ele me aliviava! O pior de tudo é que não conseguia parar de chorar e chamava a atenção de todos que passavam por mim na rua. E entrei no carro chorando. E cheguei em casa chorando. Passei direto e fui para o meu quarto pois queria ficar só e isolada, chorar tudo que estava guardado há tempos. Entrei para o quarto e bati a porta, estava com muita raiva. Me sentia uma inútil, impotente. Tudo que eu fazia era insuficiente, nada dava certo. Procurava não fazer mal a ninguém e só tinha dificuldades em controlar o pensamento. Ainda era muito orgulhosa e intransigente com os outros, mas já me policiava bastante quanto a isso. Sempre tentei proporcionar o melhor para minha filha e também passei a evitar discussões em casa para manter um clima de convivência agradável. A única coisa consciente que eu fazia de errado era fumar, e mesmo assim, só prejudicava a mim mesma pois nem dentro de casa eu fumava. Estava com raiva sim, queria gritar para o mundo que também sou gente, tenho necessidades e desejos.


Por que tudo sempre é tirado de mim?


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terça-feira, 16 de setembro de 2008

42- Mais Novidades...

Então... parei no mês de julho de 2006... quase 4 meses após a cirurgia...

Cheguei no lugar onde consigo as bolsas de colostomia gratuitamente e marquei com o enfermeiro que fazia o atendimento da tarde, para que ele me ensinasse a técnica da irrigação e tentasse arrumar o material para mim, pois é muito caro. Fui levando um relatório da minha médica, dizendo que eu tinha condições de tentar a irrigação, mesmo sendo portadora de Doença de Crohn. Mas o danado do enfermeiro foi irredutível. Enfrentou o relatório e disse que não iria me liberar para irrigação, em função do protocolo. Pedi para ver o protocolo. Ele me trouxe umas folhas datilografadas... isso mesmo... d-a-t-i-l-o-g-r-a-f-a-d-a-s, e não vi referência alguma do Ministério da Saúde.

Ele disse que o protocolo foi criado por eles mesmos e que realmente precisava ser atualizado, mas que aquela regra continuava valendo. Nossa... saí de lá espumando de raiva. O cara me tirou qualquer esperança de melhorar minha qualidade de vida! A irrigação era tudo que eu queria naquele momento... tava toda animada, depois de muito tempo...

Como não comecei a irrigação nesse momento, deixarei para explicá-la detalhadamente quando chegar a época em que realmente comecei a fazer uso, ok?

O mês de agosto começou e, logo no primeiro dia de aula, não fui. Era dia da perícia médica da Previdência e sobre essa perícia quero comentar. Fui atendida por uma médica que estava começando nessa área de perícias, mas que parecia ter maturidade suficiente para tal feito. E ela fez algo inédito até onde sei nas minhas idas até lá. Ela me examinou dos pés à cabeça. Imaginem a minha surpresa! Nesse dia, eu estava com 4 meses de cirurgia. Eis o relatório da minha médica:


“A paciente é portadora de doença de Crohn grave. Foi operada em março/06 com proctocolectomia com colostomia esquerda terminal. Evoluiu com quadro de trombose venosa profunda, em tratamento. Segue com controle médico e uso de medicação pertinente.”


Após o exame, ela chamou o “chefe” e eles analisaram e decidiram me aposentar... Nesse momento, comecei a chorar (é, chorei de novo). Disse a eles que não queria me aposentar, que estava no final do curso de Enfermagem, que queria trabalhar muito ainda e que minha médica já queria que eu começasse a irrigação. Aí eles confabularam novamente. Resolveram não me dar a aposentadoria, mas me deram mais dois anos de auxílio-doença. Próxima perícia só em Agosto de 2008! E ainda disseram que eu era muito estranha. Todo mundo queria aposentar e eu não...

Recomecei as aulas. Os primeiros dias foram muito difíceis para mim. Além da curiosidade do pessoal, ainda tinha que lidar com o barulho dos gases, que saíam a todo momento. Agora sim, era constrangedor... soltava os gases em público. Pelo menos a bolsa retinha o cheiro. Bom, mas tinha que ficar sentada a manhã toda e isso ajuda os gases a acumularem. E ainda tinha que ficar com a perna da trombose para cima. Como não podia fazer esforço físico e isso incluía andar de ônibus, resolvi contratar os serviços de uma Van. O motorista me pegava e deixava na porta de casa todos os dias. Outra despesa a mais...

Nessa mesma semana da perícia, comecei com uma diarréia brava. E novamente fiz associação com as coisas que estavam me acontecendo: reinício das aulas, agora ostomizada; apreensão pela perícia; o enfermeiro que não me permitiu fazer a irrigação; a falta de dinheiro (sempre). Para quem estava há meses parada em casa, até que esses acontecimentos não eram pouca coisa. Fui até minha médica, claro. E o que constatamos? Ahá! Estava com infecção intestinal! Legal...

Comecei com antibiótico. E também voltei com a Mesalazina...Ela me providenciou também um segundo relatório para que eu levasse até o tal enfermeiro, com os seguintes dizeres:


“A paciente é portadora de colostomia terminal à esquerda devido à doença de Crohn. Apesar da presença de hérnia pericolostômica, a paciente TEM condição de realizar irrigação da colostomia. Favor fornecer o material e orientação necessárias.”


O grifo não é meu, está exatamente assim no relatório. Pergunto: vocês acham que adiantou? O cara nem quis me atender. Aí enfezei. Fui até a AMOS (Associação Mineira de Ostomizados). Eles já me conheciam de nome, por causa do GADII, e relatei o acontecido. Me prometeram o material para o mês seguinte. Fiquei no aguardo.

Mas o mês ainda não havia terminado... ah... nunca acredite que as coisas não podem piorar...

Como eu disse anteriormente, estava usando uma meia de compressão na perna esquerda. E, com a ajuda do corticóide, havia engordado uns 15kg desde a cirurgia. Como fiquei muito tempo de repouso, juntando o peso a mais, a meia na perna que fazia compressão, e o fato de ter um estoma na barriga, tinha dificuldades de caminhar com segurança. Não deu outra. No dia 22, saindo da aula a caminho da Van, levo um tombo. Mas essa queda foi muito estranha. O passeio era plano, sem nenhum buraquinho que me fizesse tropeçar. E não me senti tropeçando, mas sim, sendo empurrada. E estava só naquele momento. Caí como uma jaca madura. Com medo de cair de barriga, coloquei o peso na minha perna que caiu primeiro no chão: a da trombose. Resultado: ralei os dois joelhos, com sangramento importante no esquerdo; torci o pé esquerdo que inchou na mesma hora; e adquiri alguns roxos em alguns pontos das duas pernas. Corri para o Pronto Atendimento, porque fiquei com medo pela perna da trombose. Mas não foi só uma torção no tornozelo. Fiz exames porque a dor estava muito forte no joelho. E lá constou que rompi o ligamento do joelho. Inchou muito e precisei de uma semana de repouso (sou a mulher dos repousos!). Mas o médico disse que foi um rompimento leve e que voltaria ao normal em um mês. Aiai...


E assim passei o mês de agosto...

domingo, 14 de setembro de 2008

41- AdaptAÇÃO

Chegou junho e fui até a ginecologista para meu exame de rotina e estava tudo muito bom. No mês de Julho/06 tive que tomar a decisão de voltar para a faculdade ou não. Sabia que teria que vencer e quebrar várias barreiras, dentro e fora de mim. Eu estava com uma bolsa de colostomia que se enchia de fezes na barriga!

Mas vou voltar dois meses na história para alguns acontecimentos (maio). Logo após o evento da trombose, fiquei gripada. Com isso, tossi e espirrei bastante. Resultado: uma hérnia, bem no meu estoma. Vejam, eu estava gorda (mais que o normal) por causa dos corticóides, tinha uma bolsa na barriga que por si só já faz volume, e agora uma hérnia. Eu parecia uma gorda grávida! Todo mundo me perguntava para quando era... tinha vontade de sumir! Logo depois descobri que os ostomizados foram enquadrados, na Lei, como deficientes físicos. Era tudo que eu precisava pra levantar minha estima: ser considerada deficiente física...


Passei altos apertos com a trombose e a hérnia. Por causa da trombose tinha que usar uma meia elástica para compressão que deveria vir até o último trombo, na virilha. Ou seja, meia até a cintura. Tive que mandar fazer uma meia de uma perna só, e com um buraco no lugar do estoma. Agora imaginem calçar essa meia todo dia (ela é apertada para dar compressão), com uma bolsa e uma hérnia na barriga, que já não era pequena. Foi um sufoco. Sei que são detalhes, mas que me desgastavam profundamente. Eu sabia que não seria “normal” novamente.

Outra coisa que quero ressaltar aqui é a rotina que passei a ter. Mensalmente ia até o SUS para pegar as bolsas de colostomia que conseguia de graça. Mas devo frisar que nunca chegavam no prazo certo. Todo mês havia atraso e sei de alguns pacientes que passavam apertos por não terem o dinheiro disponível para comprá-las. Outra rotina em minha vida foi fazer coleta de sangue semanalmente para controle do RNI. Minhas veias já não estavam muito boas para coletar sangue e isso começava a me preocupar. Quanto ao lado financeiro, tudo continuava da mesma forma. Tranquei a matrícula na faculdade, mas tinha tantos gastos depois da cirurgia que não consegui o tão esperado equilíbrio.

Recomecei a estudar em Agosto sem nenhum dinheiro sobrando. A única coisa que havia conseguido foi sair do cheque especial no banco (menos mal). E em Agosto também iria passar por nova perícia médica na Previdência. Falarei disso mais adiante. E para finalizar, em maio ainda, minha médica disse que o estoma estava necrosando! Eu deveria, todos os dias, abrir a bolsa (de duas peças) e introduzir o dedo mínimo por ele várias vezes, para evitar a estenose total...

Chegamos então no mês de Julho. No começo do mês, peguei as bolsas e colhi o sangue. E aqui comecei a realizar as coletas de sangue quinzenalmente. Na metade do mês refiz o exame na perna, referente à trombose. Os trombos estavam desfeitos, com a graça de Deus. Depois de tempos consegui dar uma suspirada de alívio. E aí, com essa melhora desse quadro específico, fiquei mais animada. Ainda deveria ter controle como, usar a meia, manter a perna elevada, o controle sanguíneo do RNI. Mas só de saber que não havia mais os trombos, já me deixava bastante aliviada. E foi nessa época que resolvi começar a escrever a minha história. Na verdade, o papo de dar vida à minha história partiu da minha médica. Ela dizia sempre que o meio médico não possuía ainda uma literatura informal, um relato mais aprofundado feito por um paciente de um caso de Doença Inflamatória Intestinal. Em outros países até já tinham, mas aqui no Brasil não. E era uma visão importante e necessária para esse profissional, já que é uma doença desencadeada pelo fator emocional. Por outro lado, seria também de grande utilidade para outros portadores da mesma doença, já que ela não é tão comum e faltam relatos cotidianos sobre o assunto. E ainda, por um terceiro ângulo, seria a terapia perfeita para mim. Ocuparia meu tempo e eu poderia fazer um retrospecto de tudo e desabafar também. Então, criei coragem, reuni a papelada que tinha e comecei a escrever. Não tem sido fácil escrever algumas coisas e relembrar outras. Às vezes sinto raiva, deixo o texto de lado, depois volto e faço as pazes com ele. Tem sido assim e tem sido muito bom.

Nesse mês de julho ainda, passei uma “raivinha” bem chata e desgastante. Pela literatura, a gente sabe que quem tem Doença de Crohn e é ostomizado não tem indicação para fazer a irrigação. Explico... Irrigação é um processo e uma técnica utilizada em colostomizados, ou seja, pessoas que foram ostomizadas no cólon. Na verdade, é como se fosse uma Lavagem Intestinal. Coloca-se, pela ação da gravidade, água para dentro do intestino e depois ela sai, trazendo junto as fezes. Quando o intestino se adapta ao processo, pode-se ficar sem a bolsa, porque ele não funcionará nos intervalos. Usa-se apenas um tampão. É o sonho de todo ostomizado. Para quem tem Crohn não é recomendado porque a doença é inflamatória, e geralmente vem a diarréia e a irrigação perde o sentido.

No próximo post volto para explicar mais detalhadamente a irrigação...

Bjim a todos!!!

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domingo, 7 de setembro de 2008

40- Tombos e Trombos

Chegamos (mais uma vez) ao hospital.

Fui levada ao Pronto Atendimento (novamente) e aguardei pelo cardiologista. Como era feriado, à noite, claro que quem estaria de plantão seria um residente. Pois bem, quando ele chegou, disse que havia feito uma cirurgia há poucos dias e que comecei a sentir as dores há poucas horas e que desconfiava de uma trombose. Ele olhou a perna (que vergonha de mostrar a perna, viu?), apertou em alguns pontos para que eu dissesse onde doía mais, colocou a perna para cima (cama de hospital é ótima por isso) e disse que iria ligar para seu superior, relatar tudo e ver quais as providências a serem tomadas. Gostei da sinceridade dele. Poucos residentes admitem que precisam opinar com alguém mais experiente. Ele voltou logo e disse que deveria se tratar de uma trombose sim, e que eu iria começar a tomar anti-coagulante. Iriam me internar (de novo!) e no dia seguinte eu faria os exames necessários. E assim foi. Só um detalhe: não consegui dormir quase nada...

No dia seguinte, logo cedo, o cardiologista apareceu. E aqui quero abrir um espaço para falar dessa criatura. Vou chamá-lo de “chicabon”. Vocês entenderão daqui a pouco o por quê. Ele entrou, pegou em minha mão, se apresentou e não soltou minha mão. Perguntou o que aconteceu, sobre a cirurgia, quis saber de tudo. Fui contando, mas ainda assim achando estranho. Ele não largava minha mão!

Depois que acabei de relatar tudo para ele, me largou (ufa!) e começou a me examinar. Mediu minha pressão arterial, auscultou meu peito, mediu meu pulso e olhou as pernas. Só uma estava inchada e roxa. E doendo. Ele apertou, como o residente e sentiu a temperatura. Aí sentou, sem cerimônia, e começou a conversar. Disse-me que conhece a minha médica e que iria conversar com ela sobre a cirurgia, para saber mais detalhes, e que voltaria para me falar a respeito. Realmente, logo depois, ele entrou e disse ter conversado com ela.

Ela disse que a cirurgia foi bastante complicada e, enquanto precisava limpar a cavidade pélvica, várias veias e artérias grandes tiveram que ser deslocadas. Com isso, alguns coágulos podem ter se formado e, com a mexida da cirurgia e as minhas também, esses coágulos devem ter se deslocado e parado em regiões por onde não mais conseguiam prosseguir viagem, formando assim o trombo. Como eu sentia dores fortes em vários locais da perna, e nem conseguia caminhar direito mais, era bem provável que eu tivesse com mais de um trombo. Eu faria um exame para identificar esses trombos. Ele novamente segurou minha mão e perguntou se eu estava bem. Eu disse que, tirando a dor da perna, tudo estava bem sim.

Quando ele saiu, minha mãe comentou que tinha gostado muito do jeito e da vibração dele. Eu disse que também havia sentido o mesmo, mas que achei muito estranho ele ficar segurando minha mão. É incrível como estamos desacostumados ao carinho... se alguém nos proporciona um, logo achamos estranho! Enfim, ele me fez visitas periódicas e foi super atencioso.


Como ele havia prescrito, fiz a ecocardiografia da perna esquerda em 24 de abril. O resultado:

“Realizado estudo do Sistema Venoso Profundo e Superficial, do membro inferior esquerdo, com aparelho Eco-Collor-Doppler HDI 3000.

- Trombose total das veias femoral comum, femoral superficial e junção safeno femoral, com vasos incompressíveis, imagem de trombos e ausência de fluxo.
- Trombose parcial das veias poplítea e tibiais posteriores com imagem de trombos e fluxo parcial nos vasos.
- Veias fibulares pervias, sem sinais de trombose.
- Veias musculares do plexo da panturrilha compressíveis, patentes, isentas de processo trombótico.

CONCLUSÃO: trombose profunda extensa no membro inferior esquerdo.


Fazia diariamente exame de sangue para controle da coagulação (RNI). A minha RNI estava alta e com risco de nova trombose. Tomava os anti-coagulantes prescritos e procurava me exercitar dentro do que ele havia me orientado. No quarto dia de internação ele chegou até minha cabeceira e disse que, em 4 dias ele achava que eu poderia ir para casa, que meu RNI estaria dentro do limite. Eu ri, e duvidei (porque estava alto mesmo!). Então ele perguntou se eu queria fazer uma aposta com ele. Eu respondi que sim, e que ganharia com facilidade. Apostamos então, um picolé. Por isso seu pseudônimo aqui é Chicabon. E claro, ele ganhou a aposta!

No dia seguinte a esse fato, ele sentou na poltrona ao lado da cama e conversou comigo. Disse que não me conhecia, que eu não era paciente dele, mas que ele gostou muito de mim e sentiu que eu não me deixava abalar por pouco. Que ele gostava de gente assim, guerreira. Que em qualquer nível em que minha vida estivesse, eu saberia enfrentar de frente. Aquilo me comoveu profundamente. Não me lembrava de quando tinha ouvido alguém me dizer palavras tão legais pela última vez. Eu tinha o apoio de algumas pessoas, mas ninguém chegava perto de mim prá falar essas coisas, olhando em meus olhos. Muito menos alguém como o Dr. Chicabon. É um homem fantástico, sensível, e que me fez ficar de pé novamente, literalmente.

Durante essa internação, recebi uma visita inesperada: meu ex-marido, com a esposa e minha ex-sogra. Aquela visita me deixou zangada e aliviada. Zangada pela cara-de-pau dele. Aliviada, porque só veio me confirmar que sua esposa tem consciência das coisas e isso me deixa tranqüila em relação à minha filha. Por um lado foi bom, porque ele sempre dizia que eu fazia muito drama com a minha doença e as coisas que aconteciam comigo. Ele pôde ver, pessoalmente, que eu não estava sendo dramática. Fiz questão de mostrar a bolsa de colostomia no abdomen.

Tive outras visitas legais, apesar de não gostar de receber visitas. Quando estou no hospital ou em casa após internação, gosto de ficar isolada. É meu jeito. As únicas pessoas de fora que não me incomodam quando aparecem são as que tenho afinidade, tipo minhas tias.

Lembram que, quando estava internando, eu disse que não queria raciocinar? Que isso me levaria a um quadro de inconformação? Pois é... Não teve jeito. No hospital, deitada, isso acontece meio que obrigatoriamente. Só para lembrar, sempre que me aborrecia, sentia necessidade de fumar. E fazia isso, no quarto mesmo, burlando todas as regras do hospital. E sabendo do risco de provocar outro trombo por causa do cigarro. Mas ou fazia isso ou começaria a ser uma pessoa agressiva ali mesmo. Quantas coisas passaram pela minha cabeça! Nem parece que acredito em Lei de Causa e Efeito e vida após a morte. Nem prece e nem leituras edificantes me tranqüilizaram nesse momento. Não conseguia aceitar as coisas que me aconteceram durante a vida. E sei que é exatamente aí que se encontra meu “start” para a doença atacar.

Não é que eu seja assim todo o tempo, geralmente sou o oposto disso. Mas, em alguns poucos instantes da vida, me dei o direito de sentir pena de mim mesma. E é horrível! Sei que nada nos acontece por acaso, mas você não ter as respostas te deixa muito vulnerável em momentos assim. Enquanto no meu dia-a-dia tenho uma fé grande, acredito em Deus e em meu anjo da guarda e tento inspirar essa confiança nas outras pessoas, naquele momento eu me sentia a cristã mais incrédula do planeta. “Homens de pouca fé!”... Me achava injustiçada, sacaneada.

Na vida, não consegui ser feliz em nada, nenhum projeto, nenhuma relação. Nada. E agora a saúde desse jeito, me privando de fazer o pouco que eu já fazia. Não era justo. Vejam bem, eu estava em um ciclo pessimista e não conseguia enxergar um futuro, quanto mais um futuro bom. E comecei também a me revoltar. Não tenho vergonha de assumir esse meu momento de fraqueza, pelo contrário, acho até que a maioria das pessoas que se encontram em meio a problemas grandes também se sintam da mesma forma. E tomei decisões, ali mesmo no hospital. Voltaria para casa, cuidaria da saúde porque é minha obrigação cuidar do meu corpo que é meu instrumento de evolução e cuidaria de continuar tentando um bom futuro para minha filha. E só! Não queria projetos a longo prazo, nem compromisso com ninguém. Passei a ter certeza absoluta de que deveria me concentrar e aceitar a viver só. E assim foi.

Em 28 de abril, recebi alta. O sumário da alta dizia:

MOTIVO DA INTERNAÇÃO: paciente portadora de doença de Crohn, em uso de azatioprina, fluoxetina, corticóide e clonazepam, em pós operatório recente de colostomia definitiva por necrose de parede de reto e sepse pélvica, iniciou no dia da internação com dor e eritema em perna esquerda. Nega febre, vômitos, dor torácica ou dispnéia. Atendida com panturrilha esquerda empastada, com eritema até raiz da coxa. Homans +, pulsos pedioso e tibial posterior finos mas presentes. Passado de anemia. Colhido coagulograma e hemograma no PA.

EVOLUÇÃO: paciente evoluiu satisfatoriamente com melhora da dor em membro inferior esquerdo, da hiperemia e do empastamento sem episódios de sangramento. Manteve-se estável hemodinamicamente, com bom padrão respiratório, sem febre, sem maiores intercorrências durante internação. Recebe alta em boas condições clínicas”

Voltei para casa, com um sorriso no rosto por estar com possibilidades de viver dignamente de novo (ou quase). Mas levaria minhas propostas adiante. E novamente afastei todos de mim. Na verdade, esse “todos” eram pouquíssimas pessoas. Fui descobrindo, ao longo desse tempo de convivência com o Crohn, que raras pessoas estavam dispostas a ajudar efetivamente, na prática. Amigos de internet não existiam mais para mim. E amigos “reais” não tinha muitos.

Coloquei todos os meus papéis em dia. É estranho e difícil explicar o que se passava comigo e sei que alguns não entenderão, mas me preparava para o que achava ser inevitável em algum momento muito próximo: meu desencarne. Não estava pessimista nem desejando morrer, apenas tinha isso gritando dentro de mim. E fui ficando “falsa” com as pessoas que se aproximavam de mim, demonstrando otimismo e resistência sempre, mas não estava assim por dentro. Estava cansada daquilo tudo. Se com 37 anos já tinha passado por tudo isso e ainda não podia dar rumo na vida, o que seria de mim com dez anos a mais? Um estorvo para minha filha? Não, definitivamente não queria isso. Nem prá mim e nem prá ela. E passei algum tempo assim...

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